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Brasil

 

Rafael De Conti

 



Liberdade de expressão: não se trata de proibição, mas de se ensinar a pensar criticamente (anatomia da atrevida MP 1068/2021)



1. O que é o esclarecimento?

A questão da liberdade de expressão é a questão de se orientar pelo próprio entendimento, sem o julgo de outrem - isso é o que kant dizia ser o esclarecimento. O sujeito só sai da menoridade, tornando-se maduro, quando se guia por si mesmo. Sabe analisar e criticar.

Com essa explanação, que parece muito difícil de se ir contra, chegamos, então, na verificação de que o processo de esclarecimento é um processo do indivíduo. Quando se proíbe uma manifestação, uma expressão, humana, antes, faz-se um julgamento sobre essa proibição. Do por quê há de ser proibida tal coisa, ou outra coisa.

Ora, então quer dizer que alguém que trabalha no Facebook, ou os obscuros algoritmos que ninguém sabe como funcionam, vão ser a mente julgadora do que você pode, ou não, ver e assistir?

Então nós começamos a observar que a ideia de proibição vai além da noção de que o proibido desperta a curiosidade...pô, tem uma imagem cinza dizendo que você tem que ter forte emoção para ver...isso não gera curiosidade?...mas vai muito além dessa constatação psicológica barata...

Em síntese, há de se estatuir quanto à liberdade de expressão: não se trata de proibição, mas de se ensinar a pensar criticamente.

2. Liberdade de expressão nas redes sociais

Analisemos a Medida Provisória, emanada do Executivo (MP 1068/2021), a qual altera o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Como se sabe, uma MP têm um prazo de validade para deixar de funcionar ou, ante a inércia ou aprovação do Legislativo, passar a alterar a lei de modo perene, como se fosse uma alteração legislativa vinda do Congresso.

Passemos ao que interessa. A primeira norma da MP, que dispõe sobre o uso das redes, vem já estatuindo que se a empresa estrangeira oferta produto para público brasileiro, ela é responsável. O Facebook, o Twitter, e etc etc...podem ser controladas por estrangeiros, ter sede fora, não interessa, será responsável.

A segunda definição trazida pela MP, acerca de "registros de acesso a aplicações de internet", que seria "o conjunto de informações referentes à data e à hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP", é pueril diante da prática de TI do dia-a-dia, onde nos logs se verificam robôs de toda parte do mundo varrendo servidores, pessoas que usam programas para mascarar o IP, etc (Como funciona a Internet nesses dois videos: (1) "https://www.youtube.com/playlist?list=PLz3SmYtqn40rvOLcNGaNdvrqmuwtMrwec" (2) "https://www.youtube.com/watch?v=DOow2DUv4oI&list=PLz3SmYtqn40rvOLcNGaNdvrqmuwtMrwec&index=3&t=0s")

Quanto à definição de "rede social", a finalidade é a expressão das mais diversas manifestações do ego humano. Em verdade, é um instrumento de metrificação, de mensuração de padrões do usuário da rede...quanto tempo olha cada foto, com quem conversa, o quê conversa, o quê curte, o quê não curte...primeira vez na História humana que se mensura até o inconsciente, a psicologia profunda, da humanidade como um todo.

Eu chamo atenção para os seguintes trechos acerca da definição que a MP traz de rede social:

(i) "rede social - aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações...por meio de contas conectadas ou acessíveis de forma articulada";

(ii) "rede social - aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações...pessoa jurídica que exerça atividade com fins econômicos e de forma organizada, mediante a oferta de serviços ao público brasileiro com, no mínimo, dez milhões de usuários registrados no País"

Observem: primeiro, se diz que pode haver contas...de forma articulada; leia-se: movimentação em bloco automatizada; segundo, uma associação não entra na parada como rede social, nem uma rede social de verdade que tenha 9.999.999 usuários. Para bom entendedor meia palavra basta?

Pois bem. Prossigamos. A MP define: "moderação em redes sociais - ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais". A plataforma, que possui finalidade social e política, não pode ser moderador do cidadão. Não se tiver 10 milhões de usuários ou mais.

E o Parágrafo Único, do Artº 5, do Marco Civil da Internet ficaria assim: "Não se incluem na definição de que trata o inciso IX do caput as aplicações de internet que se destinam à troca de mensagens instantâneas e às chamadas de voz, assim como aquelas que tenham como principal finalidade a viabilização do comércio de bens ou serviços". WhatssApp fica fora, assim como Telegram e cia...quis dizer cia de companhia, e não de CIA - Central Intelligence Agency...rs...(estou sendo irônico, tá algoritmo)...

Prosseguindo, diz o texto da norma que o usuário tem direito de acesso às informações claras e etc e etc, na mais linda redação em prol da transparência, a qual de nada serviu ao final, pois foi totalmente esvaziada com as barreiras e limites dos segredos comercial e industrial...Gente, aqui não dá...tem que ser open source e .

Se não dá para ver, não dá para auditar.

Na sequência, estatui como direito do usuário: "contraditório, ampla defesa e recurso, a serem obrigatoriamente observados nas hipóteses de moderação de conteúdo, devendo o provedor de redes sociais oferecer, no mínimo, um canal eletrônico de comunicação dedicado ao exercício desses direitos". Mas pergunta-se: quem vai julgar a divergência?

E daí caímos na seguinte norma estatuindo como direito do usuário: "restituição do conteúdo disponibilizado pelo usuário, em particular de dados pessoais, textos, imagens, dentre outros, quando houver requerimento"; o que seria o caminho probatório para acionamento judicial, já que o julgamento acima ficaria por conta da própria rede social.

Agora, analisemos essa parte da norma: "É vedada aos provedores de redes sociais a adoção de critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa, observado o disposto nos art. 8º-B e art. 8º-C.” (NR)". Antes de prosseguirmos nos artigos mencionados, há de se questionar: o que é censura?

E aqui voltamos para o início do texto. Censura é alguém querer que outrem esteja à sua merce e julgo; é querer que a pessoa ao lado seja obrigada a concordar com você, quanto a algum assunto ou postura. Censura é, portanto, um entrave ao esclarecimento. E pode uma época condenar outra aos seus entendimentos presentes? Claro que não. A mudança é inerente à vida e ao Universo.

Assim, o melhor entendimento (agora estou me contradizendo em...nunca há melhor entendimento)...assim, razoável que o limite da liberdade de expressão seja a esfera criminal. Se o que é dito configura crime, então deve ser censurado.

A norma vai nesse sentido quando diz acerca de "contas criadas com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público, ressalvados o direito ao uso de nome social e à pseudonímia e o explícito ânimo humorístico ou paródico". Não pode haver estelionato. É preciso que seja possível identificar o responsável pelo perfil. Mas aqui temos que discutir profundamente. Até que ponto o anonimato é ruim? Em um regime totalitário, seria bom ser anônimo?

E aqui um ponto crucial. Diz a norma que deve haver impedimento de: "contas preponderantemente geridas por qualquer programa de computador ou tecnologia para simular ou substituir atividades humanas na distribuição de conteúdo em provedores". Robôs não podem ser considerados como sujeitos portadores de liberdade de expressão. Bum! Essa noção tem tantas implicações!...mas essas ficam para outro artigo...

Mas vamos continuar. Agora vejamos os deveres dos usuários, da velhinha cidadã brasileira que surfa na Internet e faz a cabeça dos netinhos. Há justa causa para moderação, segundo a MP, quando a divulgação ou a reprodução configurar:

a) "nudez ou representações explícitas ou implícitas de atos sexuais"; sexo explícito é uma coisa, nudez artística é outra...vai ser difícil aqui em...se considerarmos os recalcados e viciados em sexo...

b) "prática, apoio, promoção ou incitação de crimes contra a vida, pedofilia, terrorismo, tráfico ou quaisquer outras infrações penais sujeitas à ação penal pública incondicionada"; aqui não teria como errar...mas há quem conteste...e se o sujeito for, mesmo que isso possa parecer loucura, a favor do suicídio? Com argumentação e tal...Se alguém escrever um livro acerca da liberdade de se matar, isso configura crime?...temos que fomentar o ensino, para as pessoas, acerca do bem viver, do estoicismo, etc...o carpe diem...

c) "apoio, recrutamento, promoção ou ajuda a organizações criminosas ou terroristas ou a seus atos"; imaginem a seguinte situação: a velhinha, navegadora virtual das redes sociais, acha uma propaganda bonita e resolve fazer uma doação no botão que está na propaganda; só que é tudo uma enganação a tal propaganda, e o dinheiro segue para uma conta de organização criminosa. A velhinha deve ser condenada?

d) "prática, apoio, promoção ou incitação de atos de ameaça ou violência, inclusive por razões de discriminação ou preconceito de raça, cor, sexo, etnia, religião ou orientação sexual"; o que caracterizará um video de arte marcial como violência ou esporte? O algoritmo, ou os trabalhadores das big techs, possuem apurada capacidade de distinguir discurso com ironia e sem ironia?

e) "promoção, ensino, incentivo ou apologia à fabricação ou ao consumo, explícito ou implícito, de drogas ilícitas"; o que caracteriza o termo "implícito"? A diferença entre o remédio e o veneno está na dose? As propagandas excessivas de remédios, que são drogas lícitas, poderiam incentivar a drogadicção em substâncias vendidas em farmácias? A "sociedade brasileira" é hipócrita, burra, safada ou nenhuma das anteriores?

f) "prática, apoio, promoção ou incitação de atos de violência contra animais"; só pode violência entre animais, certo? Por exemplo, para se compreender os aspectos científicos do comportamento dos leões, em que eles devoram várias presas, pode?

g) "utilização ou ensino do uso de computadores ou tecnologia da informação com o objetivo de roubar credenciais, invadir sistemas, comprometer dados pessoais ou causar danos a terceiros"; ensinar a hackear agora é crime? Dá para entender isso? Mas o governo, o Estado, não precisam dos hackers "do bem", que se concentram na segurança cibernética? O sujeito vai ensinar a fazer testes de penetração de sistemas e vai preso?

h) "prática, apoio, promoção ou incitação de atos contra a segurança pública, defesa nacional ou segurança do Estado"; o que vale mais: o direito do Estado ou o estado de Direito?

i) "utilização ou ensino do uso de aplicações de internet, sítios eletrônicos ou tecnologia da informação com o objetivo de violar patente, marca registrada, direito autoral ou outros direitos de propriedade intelectual"; buscar navegação anônima na Internet, para não ter a privacidade arrombada pelas empresas, se inclui nisso?

j) "infração às normas editadas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária referentes a conteúdo ou material publicitário ou propagandístico"; um museu de grandes novidades?

k) "disseminação de vírus de software ou qualquer outro código de computador, arquivo ou programa projetado para interromper, destruir ou limitar a funcionalidade de qualquer recurso de computador"; gente...e a velhinha que surfa na web?...

l) "comercialização de produtos impróprios ao consumo, nos termos do disposto no § 6º do art. 18 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990"; e, por fim, os consumidores...coitadinhos...cada market place por ai...o market place é responsável por quem nele anuncia e vende? O lucro da intermediação quer isso? Mas a responsabilidade por fraudes de anunciantes não quer?

3. Liberdade nas redes, sem juridiquês, e o xadrez da Política

Em resumo, da análise que fizemos até aqui da MP, podemos concluir que:

- o Estado brasileiro tem plena noção de que as redes sociais estrangeiras dominam o espaço de debate público no Brasil, sendo essa uma questão de soberania;

- podem ser criadas redes sociais por fundações e associações, que não tenham propósito de lucro, e menos de 10 milhões de usuários; lembre-se que o Brasil tem cerca de 210 milhões de habitantes, e uma profunda desigualdade;

- o direito de propriedade está a impedir a transparência das redes sociais, como sempre ocorreu com as tecnologias ao longo da História humana; segredo e poder, seja político ou econômico, possuem uma relação íntima;

- a redação de muitos dispositivos dá margem para muitas confusões e denunciações caluniosas, sendo uma tragédia anunciada a balburdia que ocorrerá no Judiciário;

- a multa prevista na MP, de até 10% do faturamento da empresa da rede social, é a trava para dificultar o exercício de moderação;

De modo que o Executivo não é mole não em...tá jogando pesado com essa MP...

Brasil se fechando para o resto do mundo? Momento de fortalecimento da soberania interna?

Viabilidade para perseguição de opositores? O feitiço pode virar contra o feiticeiro?

Ou mera divisão do poder das redes entre os cachorros grandes da Política e da Economia?

A MP foi publicada em 6 de setembro de 2021; em 30 dias dessa data as redes sociais no Brasil precisam estar adequadas. O quê será que vai acontecer em?



10 de setembro de 2021


Por:

Rafael De Conti

Rafael De Conti, filósofo e advogado

 

 

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